Mulan: 22 anos depois

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*Esse texto contém spoilers*

Esse texto não é exatamente uma resenha crítica mas se propõe a realizar uma comparação sobre as imagens de mulher construídas nos dois filmes uma vez que são bastante distintas entre si. A primeira vez que assisti ao filme Mulan foi em 2002, quando eu estava na 4ª série do ensino fundamental e tinha uns 9 anos. No momento, através do meu olhar de criança, o filme pareceu perfeito (na verdade senti falta de uma cerimônia de casamento no final), era a primeira vez que uma heroína desafiava os papéis socialmente preestabelecidos de homem e mulher mesmo que para isso devesse se disfarçar de homem. Tendo em vista essa aspecto nos dois filmes, há uma diferença interessante: no filme de 1998, os homens só se dão conta de que Ping é Mulan porque ela se fere e é necessário tirar sua armadura para cuidar do ferimento, no filme de 2020, Mulan é que se dá a conhecer após quase ser vencida pela feiticeira (outra presença feminina marcante no live-action) que diz a ela que sua mentira a torna mais vulnerável. 

Felizes para sempre

No início dos dois filmes temos cenas em que Mulan visita a casamenteira, é interessante perceber que nos dois filmes (por mais que no live-action Mulan esteja indo contra a sua vontade) a heroína está empenhada em obedecer aos pais e em trazer honra para a família através de uma boa apresentação que levará a um bom casamento. No filme de 1998 a cena do encontro de Mulan com a casamenteira é quase uma das primeiras a que assistimos, então ainda não sabemos muito sobre a personagem ou sua família; já no filme de 2020, a cena do encontro com a casamenteira acontece depois de termos assistido ao crescimento de Mulan, que tendo um espírito guerreiro muito forte (chi) é convencida pelo pai que deve esconder essa força e tentar se habituar à vida destinada às mulheres através do casamento e dos cuidados de casa. Mulan é apresentada como uma menina guerreira e destemida no filme mais recente e não como a jovem atrapalhada de 1998.

No filme de 2020 Mulan tem uma irmã que é mais socialmente mais feminina que ela e se sente feliz com seu lugar ao desempenhas as tarefas destinadas às mulheres. Mas é interessante perceber que a irmã não se afasta de Mulan por ser diferente, elas são muito amigas e se divertem juntas: a irmã mais nova gosta de ouvir sobre as aventuras de Mulan mesmo sonhando com algo diferente para si mesma. 

Sobre o par romântico escolhido para Mulan nos dois filmes, há também uma mudança significativa: ao final do filme de 1998, fica subtendido que Mulan vai se casar com o comandante depois de ter rejeitado o cargo de conselheira do imperador e voltado para casa (essa ideia é comprovada em Mulan 2 - 2004). No filme de 2020, depois de recusar fazer parte da guarda imperial, Mulan se despede de seu possível interesse amoroso e eles não voltam a se encontrar: ao final Mulan tem outra chance de se juntar à guarda imperial e dessa vez aceita. 

O lugar da mulher

É interessante notar a posição que essas personagens masculinas ocupam em relação à heroína: no primeiro filme temos um comandante que está em uma posição superior à Mulan e, portanto, é uma autoridade em relação a ela, no segundo filme temos um soldado que está em posição de igualdade e reconhece que ela é uma combatente mais forte que ele. Ainda sobre essas duas personagens temos a cena em que Mulan é descoberta e a cena em que ela volta para avisar sobre o ataque ao imperador. Em ambos os filmes Mulan salva o comandante da morte durante o confronto na montanha, mas no filme mais antigo esse fato é crucial para que ela continue viva porque, quando descoberta, o comandante dá a entender que ela será expulsa e não morta unicamente por ter salvo sua vida: uma vida por outra. Já no filme mais recente Mulan é expulsa ao invés de ser executada (punição que ela mesma prefere) porque o comandante reconhece que ela lutou bravamente. Na cena em que Mulan volta para avisar sobre o ataque à cidade imperial, o comandante se recusa a ouvi-la: no primeiro filme ela argumenta dizendo que se ainda fosse Ping seria ouvida, no segundo filme essa fala é dita por Chen que admira a coragem de Mulan e, em seguida, todo o regimento se coloca ao lado da heroína. 

22 anos depois, era esperado que a Disney apresentasse uma versão de Mulan que dialogasse com os tempos que vivemos, então o filme não faz nada além de cumprir essa expectativa: apresentar uma mulher forte que luta por seus ideias. Essa heroína não surge ao acaso, vem sendo construída pela Disney ao longo de décadas. Nos filmes mais antigos temos mocinhas que estão sempre a espera de um príncipe para com ele se casarem e viverem felizes para sempre como é o caso de Branca de Neve, A bela adormecida e Cinderela (três personagens inspiradas na tradição dos Contos de Grimm), mas nos anos 90 essa visão parece sofrer mudanças graduais com Ariel que deixa sua casa para ir ela mesma atrás do príncipe com o qual ela sonha, Bela que assume o lugar do pai para viver com a Fera e recusa se casar com Gaston e finalmente Mulan que se torna uma guerreira. Mais recentemente temos Merida (uma guerreira que recusa se casar), Elsa que está (envolvida em salvar a irmã e não liga nem um pouco para casamento) e Moana (que se torna a salvadora de seu povo). Em se tratando de live-actions temos Giselle (Encantada) que apesar de cantar o filme toda e ser muito feminina acaba destruindo a bruxa e descobrindo que não quer se casar com o príncipe e o protagonismo da sombria Malévola que acaba salvando a princesa no lugar do príncipe. Finalmente, nos deparamos com essa releitura de Mulan que certamente não é o fim, mas o início de um longo caminho de mudanças na representação da mulher nos filmes da Disney.

Sobre as críticas que apontam para um filme menos cômico, sem músicas cantadas e sobre as comparações com o filme anterior, só posso dizer que creio que estamos diante de um filme e uma proposta diferentes, que talvez não alcançariam seu objetivo se fossem simplesmente uma reprodução do primeiro filme.